segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Libertando-se do domínio e da dependência de cartografias tradicionais do conhecimento, o projeto de publicação do primeiro volume de Estudos de Literatura do Centro de Estudos em Letras (CEL-UÉ), intitulado Paisagens do Ser, cruza fronteiras epistemológicas e práticas de pesquisa. Entende-se neste contexto Paisagens do Ser como as formas narrativa, dramática ou lírica que autores de todos os séculos e nacionalidades, utilizaram para criar personagens e contextos que, de um modo ou de outro representam os indivíduos e as sociedades.

A adoção de abordagens críticas diferentes visa dar visibilidade a trabalhos na área da literatura e da cultura que discutem questões de identidade, de memória, de poder ou de representação, entre outras, em contextos e em tempos sociais e culturais diversos, desde a esfera pública à privada, aos vários lugares e espaços de intimidade ou de exterioridade e de alteridade, dando voz à multiplicidade e heterogeneidade da investigação do CEL-UÉ.

Nesta diversidade das Paisagens do Ser, de que testemunham estes artigos, transparecem duas grandes áreas: as Paisagens exteriores e as Paisagens interiores. A cidade, nas suas mais variadas figurações é, por excelência, a paisagem física, se não a predileta, a que mais inspirou os artistas, sobretudo desde o século XIX.

Fernando Gomes, percorrendo alguns autores ao longo dos séculos, relembra as origens do mito da cidade perversa em oposição à cidade da perfeição, salientando as funções literárias desse confronto assim como a ambivalência do homem perante a sua criação. Londres, nomeadamente os modos como é representada como um lugar de Poder em contextos privados, sociais e políticos, nos dois volumes da autobiografia política de Margaret Thatcher: The Path to Power e The Downing Street Years, é tema do artigo da coautoria de Ana Clara Birrento e Olga Gonçalves. Numa colaboração metodológica entre agendas críticas dos estudos culturais e a análise do discurso, o artigo mapeia a cidade na sua intersecção entre um eixo de subjetividade e a lógica do Poder de Estado. Deslocando-nos para Sul, para as paisagens mediterrânicas, Odete Jubilado desenvolve uma análise comparatista em torno das narrativas breves de Lettres de mon Moulin de Alphonse Daudet e de Gente Singular de Manuel Teixeira Gomes, realçando o modo como estes autores partilham as suas memórias sobre a Provence e o Algarve. A ilha de Malta é, n’O Mistério da Estrada de Sintra, o cenário de uma história de amor e de crime. Ana Luísa Vilela argumenta que, através desta narrativa, Eça de Queirós contribuiu para a formação de uma imagem de Malta, à semelhança da mulher romântica, inquietante, sedutora e imprevisível. As paisagens africanas são o cenário de Onitsha de Le Clézio e Um rio chamado tempo e uma casa chamada terra de Mia Couto. Celina Martins expõe o modo como estas narrativas encenam a viagem iniciática dos protagonistas numa África concebida como espaço de transcendência, um lugar de iniciação e abertura à alteridade.

 

As paisagens interiores influenciadas, quer positiva quer negativamente, pelo ambiente que nos rodeia são fonte inesgotável de criação literária. A tradição satírica instituída por Horácio – produção da sua sátira enquanto caminha pela cidade – é inspiração do enunciador dos poemas de Nicolau Tolentino. Carlos Nogueira procura demonstrar que é através de um riso instável que o eu-poeta-personagem tolentiniano desconstrói os modelos morais e comportamentais de toda a sociedade do seu tempo. Por seu turno, a poesia de Antero de Quental apresenta um jogo cerrado e dialético de imagens e de pensamentos. Destacando a negatividade e as suas imagens mais representativas, António Cândido Franco procura demonstrar que a poesia de Quental é expressão e paisagem duma complexa metafísica que é capaz, porém, de se resolver numa unidade superior de todos os opostos.

Creta é o local geográfico, mas também paisagem íntima, lugar mítico e literário explorado por Jorge de Sena no seu poema “Em Creta, com o Minotauro”. Elisa Nunes Esteves faz uma releitura deste texto, considerado um hino a Creta, salientando os temas da identidade, da relação com a pátria e o exílio idealizado pelo eu lírico. “Ser ou não ser Ofélia eis a questão colocada por Carla Ferreira de Castro que acompanha os versos de Shakespeare com várias aproximações a diferentes momentos artísticos. O seu artigo confronta-nos com uma dupla perspetiva da paisagem, na vertente geográfica - a do riacho que Ofélia escolhe como mortalha - na paisagem psicológica, que corresponde à essência da jovem órfã, incapaz de coexistir com as sucessivas perdas que experiencia

A representação do “eu” e do “outro” na literatura do século XIX é o tema abordado por Ana Cláudia Salgueiro da Silva que propõe uma leitura de dois romances: Uma Família Inglesa de Júlio Dinis e O Primo Basílio de Eça de Queirós que, através de olhares plurais, oferecem uma visão distinta do real com finalidade pedagógica, nomeadamente a consolidação de estruturas fundamentais como o casamento. Os meandros do sentir e da interioridade e a forma como o confronto com a sociedade determina as deambulações efetuadas ao longo da diegese dos protagonistas de Eurico, o presbítero e Ivanhoe, são objeto da leitura comparada de Teresa Mendes que procura perceber os mecanismos narrativos e textuais encontrados por Alexandre Herculano e Walter Scott para construir as suas personagens.

 

Este primeiro volume de Estudos de Literatura do Centro de Estudos em Letras (CEL – UÉ), intitulado Paisagens do Ser, apresenta-se como uma coletânea de artigos de crítica literária que se debruçam sobre obras em modos discursivos diversos – narrativas, textos dramáticos e líricos – que, pela sua multiplicidade, testemunham do vigor e contemporaneidade da representação literária do indivíduo e da sociedade.

O mesmo só pôde ser concretizado graças à inestimável colaboração da Comissão Científica composta por:

Ana Isabel Moniz (Universidade da Madeira)

Antonio Sáez Delgado (Universidade de Évora)

Cristina Robalo Cordeiro (Universidade de Coimbra)

Elisabeth Jay (Oxford Brookes University)

Helena Buescu (Universidade de Lisboa)

Jeanyves Guérin (Université Sorbonne-nouvelle – Paris III)

José Pedro Serra (Universidade de Lisboa)

Mário Avelar (Universidade Aberta)

 

 

Fernando Gomes

Ana Clara Birrento

Odete Jubilado

Elisa Nunes Esteves