sexta-feira, 1 de agosto de 2008

“A Cosmos no Património Cultural Português”.


Os anos trinta constituem um dos períodos mais conturbados do século XX. Em Portugal, é plebiscitada, em 1933, uma nova constituição que estabelece as bases da ditadura do Estado Novo. A Europa assiste ao triunfo do Nazismo, ao surgimento da frente Popular em França e em Espanha e à guerra civil espanhola que levará Franco ao poder.Será neste período que Manuel Rodrigues de Oliveira (1911-1996) vai fundar a editora Cosmos que se afirmará, desde logo, no panorama editorial português conseguindo, apesar das malhas da censura , fazer publicar textos e autores que abordavam, de modo acessível à maioria da população, os diversos sectores do conhecimento.Tarefa desde logo difícil se atendermos a que a política cultural do Estado Novo assentava no pressuposto de que o conhecimento sempre fora apanágio das elites e que assim deveria continuar a ser pois em nada servia à população em geral podendo mesmo, segundo autores da época, ser-lhe prejudicial. Portugal tinha então cerca de 75% por cento de analfabetos “ a parte mais linda, mais forte e mais saudável da alma portuguesa” escrevia, no Jornal “O Século” Virgínia de Castro e Almeida. Manuel Rodrigues de Oliveira não partilha desta opinião, fazendo parte de um grupo de intelectuais, cada vez mais vasto que defende a necessidade de educar e informar toda a população de forma a torná-la mais livre e mais próspera, numa oposição clara ao regime.Nesse grupo de intelectuais destaca-se a figura do matemático e professor Bento de Jesus Caraça (1901-1948) que, numa conferência proferida em 1931 e intitulada «As Universidades Populares e a Cultura» defendia “Eduquemos e cultivemos a consciência humana, acordemo-la quando estiver adormecida, demos a cada um a consciência completa de todos os seus direitos e de todos os seus deveres, da sua dignidade, da sua liberdade.Sejamos homens livres, dentro do mais belo e nobre conceito de liberdade o reconhecimento a todos do direito ao completo e amplo desenvolvimento das suas capacidades intelectuais, artísticas e materiais». Dois anos depois e em a ” A Cultura Integral do Indivíduo ” defende que o homem culto é aquele que «1.º - Tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence; 2.º - Tem consciência da sua personalidade e da dignidade que é inerente à existência como ser humano; 3.º - Faz do aperfeiçoamento do seu ser interior preocupação máxima e fim último da vida. » e acrescenta «A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico; significa, numa palavra, a conquista da liberdade. E para atingir esse cume elevado, acessível a todo homem, como homem, e não apenas a uma classe ou grupo, não há sacrifício que não mereça fazer-se, não há canseira que deva evitar-se. A pureza que se respira no alto compensa bem fadiga da ladeira. ».Partilhando destas teses Manuel Rodrigues aborda Bento de Jesus Caraça, no final de mil novecentos e quarenta (a vinte e nove de Outubro) convidando-o para aceitar um lugar de direcção numa colecção de formação e divulgação popular que pretende editar. O professor aceita “em princípio”, e confirma o facto a um de Novembro. Seis dias depois á apresentado e aprovado o programa geral da colecção “Biblioteca Cosmos”, sendo o primeiro volume , intitulado “o Homem e o Livro” publicado em Maio de 1941. Nesse primeiro volume o director explica aos potenciais leitores os objectivos da colecção “dar ao maior número o máximo possível de cultura geral, tornar acessível a todos aquilo que as condições materiais de vida e as necessidades profissionais da especialização tornam sempre difícil, e por vezes mesmo impossível, adquirir uma visão geral do mundo, mundo físico e mundo social, da sua construção, da sua vida e dos seus problemas”. Tal objectivo , partilhado por todos os autores e cientistas prestigiados que, desde logo, aceitam colaborar num projecto deste nível, tinha como bases uma “determinada maneira de encarar a civilização, no seu estado presente e no seu desenvolvimento através dos tempos” de que resultava “o considerar-se ao cultura como não devendo ser monopólio de classe ou grupo, o julgar-se que o homem comum tem o direito (...) a que a cultura seja posta ao seu alcance.”.Subjacente a esta visão da vida estava a crença de que só a valorização cultural de todos permitiria a construção de uma “Cidade Nova” a construir depois de ultrapassadas todas as vicissitudes e convulsões que o mundo então atravessava. “Quando acabar a tarefa dos homens que descem das nuvens a despejar explosivos, começará outra tarefa- a dos homens que pacientemente, conscientemente, procurarão organizar-se de modo tal que não seja mais possível a obra destruidora daqueles. Então, com o estabelecimento de novas relações e novas estruturas, o homem achar-se-á no centro da sociedade numa posição diferente, com outros direitos, outras responsabilidades. É toda uma vida nova a construir, dominada por um humanismo novo.”, escreve Bento de Jesus concluindo “A Biblioteca Cosmos pretende ser uma pequena pedra desse edifício luminoso que está por construir”.A colecção, organizada por sete secções temáticas, irá manter-se até à morte do seu director ,em 1948 e é ainda hoje um marco na cultura portuguesa do século XX, quer pelo número de títulos publicados (114 distribuídos por 145 volumes) quer pela qualidade dos textos e dos autores (portugueses e estrangeiros) que nela participaram. Poetas como Mário Dionísio, matemáticos como o próprio Bento de Jesus Caraça que publica , em dois volumes a obra “ Conceitos Fundamentais da Matemática”, cientistas como Rómulo de Carvalho, musicólogos como Luís de Freitas Branco, escrevem propositadamente para a colecção procurando estimular o gosto pelo saber sobretudo nas camadas mais jovens.Simultaneamente, a editora consegue adquirir direitos de tradução de obras de referência dando a conhecer aos portugueses, através da publicação dessas obras, novas correntes do pensamento europeu e novas práticas sociais.A morte prematura de Bento de Jesus Caraças pôs fim à “Biblioteca Cosmos” mas não à editora que continuou a política editorial delineada aquando da sua criação, através da edição de novas colecções de entre as quais destacamos “Rumos do Mundo” e “A Marcha da Humanidade” que, na década de setenta, dão a conhecer as novas correntes historiográficas, publicando autores como Gordon Childe (“O Homem Faz-se a si Próprio”, George Duby, Lucien Febvre Fernand Braudel (“Civilização Material e Capitalismo”) a par de António de Oliveira Marques, Vitorino Magalhães Godinho e Joaquim Romero Magalhães.A partir dos finais da década de setenta, a editora, não perdendo de vista os objectivos que levaram à sua criação, aposta também numa política de cooperação com Universidades, Institutos Públicos e investigadores, abrindo espaço em várias colecções e revistas universitárias (8 em 1990) para a publicação de trabalhos de investigação (trabalhos de seminários, teses de mestrado e doutoramento, actas de congressos) com destaque para a área das chamadas Ciências Sociais (história, relações internacionais, política e defesa, arte e património, para só referir algumas). Para dirigir as várias colecções Manuel Rodrigues de Oliveira bem como aqueles que lhe sucederam à frente dos destinos da editora, souberam escolher coordenadores e directores de grande craveira intelectual, garantindo, desde logo a qualidade do que é publicado e mantendo o prestígio da Cosmos. Em 1998, aquando da comemoração do seu cinquentenário, a editora doa parte do espólio inicial ao Museu do Neo-Realismo (Vila Franca de Xira) para que este seja conservado , classificado e mostrado em condições apropriadas e estabelece como preocupações prioritárias“ a política da Leitura em Portugal, o uso imaginativo da Internet na difusão do livro e das iniciativas culturais, além da criação de alternativas nas relações culturais e comerciais com o Brasil”.

Tais preocupações apresentam-se como complementares à preocupação inicial de educar e informar e, no inicio deste novo século, continuam a nortear uma Cosmos que se quer renovada mas activa e participativa na sociedade contribuindo, como Bento de Jesus Caraça escrevia em 1941, para “a criação da Cidade Nova”