O Tratado de Lisboa
1. Mudança de paradigma ou continuidade? A Europa, a história da União Europeia, é um processo, um caminho que se faz caminhando. Não é fácil dizer se o salto da Europa no Tratado de Lisboa foi ou não mais longe do que o salto que deu no Tratado de Roma. O salto e o sobressalto. Porque também não é fácil dizer se o contexto real da vida dos povos europeus era verdadeiramente mais fremente em 1957 do que o é 50 anos depois, em 2007.
As memórias dolorosas da Segunda Guerra que obrigaram os líderes da Europa democrática a sentar-se à mesa, a dar as mãos, a desmontar as formas clássicas da relação entre Estados, a trazer às instituições a moralidade da consciência sobre os outros - tudo isso que levou ao Tratado de Roma em 1957 - tem o seu correspondente, hoje, na emergência dos problemas globais, num mundo de interacções em que os mercados, a tecnologia, a informação, os movimentos migratórios desafiam a sacralidade das fronteiras. O mundo da globalização, clamando por uma justiça global e um direito cosmopolita.
A necessidade de uma partilha política em vista de um projecto de justiça constitui, afinal, a ideia central dos Tratados europeus que vão de Roma a Lisboa. Nesta linha evolutiva a Europa se fundou e refundou. Em Roma, a renúncia à falsa autarcia da soberania clássica e do isolamento, mesmo pelo caminho mais neutro dos acordos sobre o carvão e o aço e pelos postulados mais evidentes de uma comum Democracia. Em Lisboa, o espectro do alargamento, e o aprofundamento de uma integração política que se propõe ultrapassar os laços tíbios da simples cooperação e a ingovernabilidade implicada na permanente negociação entre Estados.
2. O que traz verdadeiramente de novo o Tratado de Lisboa é que nele a Europa se dá um centro político com uma prática institucional cada vez mais radicada na previsibilidade das normas e cada vez mais apta a produzir resultados. As decisões por maioria qualificada no Conselho, em vez das decisões por unanimidade [são ampliadas as decisões por maioria qualificada, significando dupla maioria de 55% dos Estados e 65% da população] dão às iniciativas políticas europeias uma perspectiva de resultado, até aqui, à partida, nunca garantido. Com efeito, esta passagem da unanimidade à maioria permite redimensionar para mais as decisões comuns. A unanimidade conduzia quase sempre a um denominador comum muito estreito, a um resultado mínimo.
3. Ao mesmo tempo, o Parlamento Europeu é chamado à co-decisão em matérias fundamentais da vida da União. A co-decisão envolve a aprovação conjunta do Conselho de Ministros, representando os Governos da União, e do Parlamento Europeu, representando os cidadãos europeus. Uma espécie de federalização do método de decisão, o modo mais conseguido de conjugação da representação (Parlamento) e da "representação da representação" (Governos). A velha estrutura de pilares - o comunitário, o da política externa e o da justiça - a que correspondiam diferentes métodos de decisão e que tornava umas matérias mais europeias do que as outras, quase que desapareceu. As matérias da Justiça, por exemplo, ganham um estatuto europeu que as retira da lógica da pura feudalização no poder soberano dos Estados membros. Muitas decisões legislativas eram espartilhadas numa esquizofrénica divisão de competências por pilares. Exemplo disso é o regime da protecção de dados: a protecção de dados remetia para um procedimento comunitário (Parlamento + Conselho), se entranhasse a regulação do mercado interno, mas já remetia para um procedimento intergovernamental (Conselho), se entranhasse a segurança interna.
O desaparecimento da estrutura escalonada dos pilares induz uma maior coerência sistémica nas instituições e acções da União. Antes, era como se a Europa pretendesse constituir-se em orquestra, mas sem os ritmos consequentes.
4. O Tratado de Lisboa assumiu a integração dos Estados da Europa que é o devir normal da sua fundação no Tratado de Roma. O paradigma está numa perspectiva antropocêntrica das instituições e do poder. Uma perspectiva que as orienta e redesenha segundo o desígnio final da realização da dignidade humana. É o paradigma do constitucionalismo originário, da subordinação do poder à garantia dos direitos. Mas, agora, instalado numa democracia de larga escala e agigantado por uma perspectiva de humanidade que - temos de reconhecer - também a globalização deixa mais ao nosso alcance.
Este sortilégio de uma política antropocêntrica, que dá morte ao mito clássico da soberania de Maquiavel e de Rousseau, é o mesmo que assinalou a Europa como pátria do Iluminismo, território sem fronteiras, exemplo de uma união de povos que é a inevitabilidade em que se cumpre inteiramente o ideal humano das Constituições internas, como Kant já antecipara, muito antes de Roma e de Lisboa, no século XVIII.
5. A União Europeia ganha personalidade jurídica, o binómio União Europeia/Comunidade Europeia dá lugar a uma União Europeia única. A Europa cruza o direito internacional e o direito constitucional no melhor sentido. As competências da União e as competências dos Estados têm agora a sua distribuição explicitada no Tratado, e a clarificação das competências é a garantia da responsabilidade. A Europa é um desafio comum a pedir um trabalho em rede.
O novo papel do Parlamento Europeu como um dos actores principais da legislação europeia "reconcilia-o" com a sua natureza de Parlamento. A legislação europeia ganha em legitimidade e a democracia europeia em qualidade. Para mais, numa lógica de distribuição de papéis, não pode nem deve ver-se o Parlamento Europeu como uma cópia dos Parlamentos nacionais. A cada um o seu significado e a sua função. E cada significado e cada função não têm um valor líquido, confundível. Eles concorrem para a resposta adequada de um sistema político que se tornou complexo em vista de se adaptar a um território também complexo.
6. É verdade que o Tratado de Lisboa, com o reforço do poder do Parlamento Europeu, aproximou, de certo modo, o sistema político europeu da textura institucional do Estado clássico. Mas sem o poder performativo de uma Constituição, sem a consistência de um centro normativo único de imputação de uma espécie de lealdade constitucional. A verdadeira "nostalgia" do Estado, a que politizaria a Europa, com os símbolos da coesão e a formação de um povo europeu ficou, de certo modo, adiada.
7. Mas, por enquanto, já se desvanece a Europa dos Governos, o quase-monopólio legislativo da Europa dos Governos. A "concentração" no Conselho de ministros europeu de um poder de decisão em matéria de direitos, liberdades e garantias, para dar um exemplo, mostrava-se por demais absurda perante a própria lógica da reserva parlamentar das Constituições dos Estados membros. O Conselho de ministros decidia à margem do poder do Parlamento Europeu e, ainda, à margem de um verdadeiro escrutínio dos Parlamentos nacionais. A Europa dos direitos escapava pelos cantos das instituições. O sistema institucional europeu estrutura-se agora sobre a base de uma maior publicidade e de uma maior democraticidade. A lógica da representação directa (Parlamento Europeu e Parlamentos nacionais) ganha um maior equilíbrio com a lógica da representação indirecta (Governos). De caminho, afirma-se o poder de os Parlamentos nacionais travarem o processo de decisão europeu, por um sistema de alerta precoce, ensaiando a eficiência de um network político entre o "centro" e as "periferias".
8. Original ainda este modelo político europeu, na medida em que responde a um território imenso e complexo com uma governação que agora perde as presidências rotativas - e o seu encanto - para fazer coexistir diferentes lideranças numa geometria de singular competição entre os poderes de topo. Um presidente da Comissão, um presidente do Parlamento, mas também um presidente do Conselho europeu e um Alto Representante para os Negócios Estrangeiros. De certo modo, a Europa adquire com as várias lideranças uma personalização do poder que contrasta com a parda burocracia a que nos habitou e que dela, de certo modo, nos distanciou. Paradoxo que ficará para a teoria: o poder personalizado "de todos aborrido" que marcou a pré-modernidade política carrega agora - com as devidas diferenças e noutro enquadramento - a virtude de politizar a Europa abstracta, de trazer ganhos de comunicação às suas estruturas legais tradicionais.
1. Mudança de paradigma ou continuidade? A Europa, a história da União Europeia, é um processo, um caminho que se faz caminhando. Não é fácil dizer se o salto da Europa no Tratado de Lisboa foi ou não mais longe do que o salto que deu no Tratado de Roma. O salto e o sobressalto. Porque também não é fácil dizer se o contexto real da vida dos povos europeus era verdadeiramente mais fremente em 1957 do que o é 50 anos depois, em 2007.
As memórias dolorosas da Segunda Guerra que obrigaram os líderes da Europa democrática a sentar-se à mesa, a dar as mãos, a desmontar as formas clássicas da relação entre Estados, a trazer às instituições a moralidade da consciência sobre os outros - tudo isso que levou ao Tratado de Roma em 1957 - tem o seu correspondente, hoje, na emergência dos problemas globais, num mundo de interacções em que os mercados, a tecnologia, a informação, os movimentos migratórios desafiam a sacralidade das fronteiras. O mundo da globalização, clamando por uma justiça global e um direito cosmopolita.
A necessidade de uma partilha política em vista de um projecto de justiça constitui, afinal, a ideia central dos Tratados europeus que vão de Roma a Lisboa. Nesta linha evolutiva a Europa se fundou e refundou. Em Roma, a renúncia à falsa autarcia da soberania clássica e do isolamento, mesmo pelo caminho mais neutro dos acordos sobre o carvão e o aço e pelos postulados mais evidentes de uma comum Democracia. Em Lisboa, o espectro do alargamento, e o aprofundamento de uma integração política que se propõe ultrapassar os laços tíbios da simples cooperação e a ingovernabilidade implicada na permanente negociação entre Estados.
2. O que traz verdadeiramente de novo o Tratado de Lisboa é que nele a Europa se dá um centro político com uma prática institucional cada vez mais radicada na previsibilidade das normas e cada vez mais apta a produzir resultados. As decisões por maioria qualificada no Conselho, em vez das decisões por unanimidade [são ampliadas as decisões por maioria qualificada, significando dupla maioria de 55% dos Estados e 65% da população] dão às iniciativas políticas europeias uma perspectiva de resultado, até aqui, à partida, nunca garantido. Com efeito, esta passagem da unanimidade à maioria permite redimensionar para mais as decisões comuns. A unanimidade conduzia quase sempre a um denominador comum muito estreito, a um resultado mínimo.
3. Ao mesmo tempo, o Parlamento Europeu é chamado à co-decisão em matérias fundamentais da vida da União. A co-decisão envolve a aprovação conjunta do Conselho de Ministros, representando os Governos da União, e do Parlamento Europeu, representando os cidadãos europeus. Uma espécie de federalização do método de decisão, o modo mais conseguido de conjugação da representação (Parlamento) e da "representação da representação" (Governos). A velha estrutura de pilares - o comunitário, o da política externa e o da justiça - a que correspondiam diferentes métodos de decisão e que tornava umas matérias mais europeias do que as outras, quase que desapareceu. As matérias da Justiça, por exemplo, ganham um estatuto europeu que as retira da lógica da pura feudalização no poder soberano dos Estados membros. Muitas decisões legislativas eram espartilhadas numa esquizofrénica divisão de competências por pilares. Exemplo disso é o regime da protecção de dados: a protecção de dados remetia para um procedimento comunitário (Parlamento + Conselho), se entranhasse a regulação do mercado interno, mas já remetia para um procedimento intergovernamental (Conselho), se entranhasse a segurança interna.
O desaparecimento da estrutura escalonada dos pilares induz uma maior coerência sistémica nas instituições e acções da União. Antes, era como se a Europa pretendesse constituir-se em orquestra, mas sem os ritmos consequentes.
4. O Tratado de Lisboa assumiu a integração dos Estados da Europa que é o devir normal da sua fundação no Tratado de Roma. O paradigma está numa perspectiva antropocêntrica das instituições e do poder. Uma perspectiva que as orienta e redesenha segundo o desígnio final da realização da dignidade humana. É o paradigma do constitucionalismo originário, da subordinação do poder à garantia dos direitos. Mas, agora, instalado numa democracia de larga escala e agigantado por uma perspectiva de humanidade que - temos de reconhecer - também a globalização deixa mais ao nosso alcance.
Este sortilégio de uma política antropocêntrica, que dá morte ao mito clássico da soberania de Maquiavel e de Rousseau, é o mesmo que assinalou a Europa como pátria do Iluminismo, território sem fronteiras, exemplo de uma união de povos que é a inevitabilidade em que se cumpre inteiramente o ideal humano das Constituições internas, como Kant já antecipara, muito antes de Roma e de Lisboa, no século XVIII.
5. A União Europeia ganha personalidade jurídica, o binómio União Europeia/Comunidade Europeia dá lugar a uma União Europeia única. A Europa cruza o direito internacional e o direito constitucional no melhor sentido. As competências da União e as competências dos Estados têm agora a sua distribuição explicitada no Tratado, e a clarificação das competências é a garantia da responsabilidade. A Europa é um desafio comum a pedir um trabalho em rede.
O novo papel do Parlamento Europeu como um dos actores principais da legislação europeia "reconcilia-o" com a sua natureza de Parlamento. A legislação europeia ganha em legitimidade e a democracia europeia em qualidade. Para mais, numa lógica de distribuição de papéis, não pode nem deve ver-se o Parlamento Europeu como uma cópia dos Parlamentos nacionais. A cada um o seu significado e a sua função. E cada significado e cada função não têm um valor líquido, confundível. Eles concorrem para a resposta adequada de um sistema político que se tornou complexo em vista de se adaptar a um território também complexo.
6. É verdade que o Tratado de Lisboa, com o reforço do poder do Parlamento Europeu, aproximou, de certo modo, o sistema político europeu da textura institucional do Estado clássico. Mas sem o poder performativo de uma Constituição, sem a consistência de um centro normativo único de imputação de uma espécie de lealdade constitucional. A verdadeira "nostalgia" do Estado, a que politizaria a Europa, com os símbolos da coesão e a formação de um povo europeu ficou, de certo modo, adiada.
7. Mas, por enquanto, já se desvanece a Europa dos Governos, o quase-monopólio legislativo da Europa dos Governos. A "concentração" no Conselho de ministros europeu de um poder de decisão em matéria de direitos, liberdades e garantias, para dar um exemplo, mostrava-se por demais absurda perante a própria lógica da reserva parlamentar das Constituições dos Estados membros. O Conselho de ministros decidia à margem do poder do Parlamento Europeu e, ainda, à margem de um verdadeiro escrutínio dos Parlamentos nacionais. A Europa dos direitos escapava pelos cantos das instituições. O sistema institucional europeu estrutura-se agora sobre a base de uma maior publicidade e de uma maior democraticidade. A lógica da representação directa (Parlamento Europeu e Parlamentos nacionais) ganha um maior equilíbrio com a lógica da representação indirecta (Governos). De caminho, afirma-se o poder de os Parlamentos nacionais travarem o processo de decisão europeu, por um sistema de alerta precoce, ensaiando a eficiência de um network político entre o "centro" e as "periferias".
8. Original ainda este modelo político europeu, na medida em que responde a um território imenso e complexo com uma governação que agora perde as presidências rotativas - e o seu encanto - para fazer coexistir diferentes lideranças numa geometria de singular competição entre os poderes de topo. Um presidente da Comissão, um presidente do Parlamento, mas também um presidente do Conselho europeu e um Alto Representante para os Negócios Estrangeiros. De certo modo, a Europa adquire com as várias lideranças uma personalização do poder que contrasta com a parda burocracia a que nos habitou e que dela, de certo modo, nos distanciou. Paradoxo que ficará para a teoria: o poder personalizado "de todos aborrido" que marcou a pré-modernidade política carrega agora - com as devidas diferenças e noutro enquadramento - a virtude de politizar a Europa abstracta, de trazer ganhos de comunicação às suas estruturas legais tradicionais.
9. E há ainda a Carta dos Direitos Fundamentais, agora vinculativa. A Carta de direitos, recordando a legitimidade fundadora da União e, por isso, constituindo o background e a motivação de todas as suas políticas. A Carta é a celebração de um activismo sem precedentes na luta pelos direitos humanos, esse mesmo que abre as portas da Europa para o mundo. Supremo ideal na política interna e externa da União Europeia, razão de ser que nos faz compreender a Europa muito para além dos limites das suas fronteiras.
A Carta está aí num anexo, que só não obrigou a Inglaterra e a Polónia. Por muito tempo? Sobre a Carta, o Tribunal de Justiça trabalhará a matéria da sua jurisprudência, e a partir da Carta, desenvolverá o seu papel de promotor da coerência do sistema.
10. Também a subsidiariedade - método que distribui as tarefas entre as instituições europeias e as instituições nacionais - é matéria candidata à solução de conflitos pelo Tribunal de Justiça.
O quadro das competências do centro político e dos Estados membros é agora mais claro e os Parlamentos nacionais são chamados a um controlo a priori da subsidiariedade, que, antes, cabia só à Comissão e ao Tribunal. A subsidiariedade é agora uma espécie de "subsidiariedade integrada" em que os Parlamentos nacionais ganham um estatuto de parte, num jogo de interacções com o centro político da União. A Europa é, aliás, cada vez mais uma Europa dos Parlamentos. O papel dos Parlamentos nacionais nesse controlo da subsidiariedade traz ao processo de decisão uma legitimidade acrescida. Não se sabe se também uma diminuição do potencial de conflitos. Uma coisa é certa. O Tribunal tem aqui um papel essencial de composição, próprio de um juiz Hércules. É que a subsidiariedade constitui um método racional de distribuição de competências num trabalho em rede, mas ela vem sendo muitas vezes invocada com a pretensão de um desgaste dos poderes do centro o qual, levado às últimas consequências, seria afinal a erosão da União. O Tribunal de Justiça tem nas suas mãos esta tarefa de definir os limites entre a subsidiariedade como método e a subsidiariedade como ameaça.
11. Com o Tratado de Lisboa a União Europeia ganha uma eficiência a um tempo política e moral. Porque é a capacidade de as instituições produzirem resultados numa comunidade de direito que projectará a ética pública da Europa na sua relação com o mundo. Para mais, quando a globalização se tornou um desafio que é feito não apenas à economia, mas também à justiça. Só uma comunidade assim reforçada é capaz de devolver à política o seu papel de regulação da economia, quer dizer, o seu relativamente perdido poder programante. A Europa é um novo bloco, resposta integrada à força dos mercados e, ao mesmo tempo, marco de uma existência política que torna o mundo mais equilibrado e multipolar. E um mundo equilibrado e multipolar é o mundo dos direitos, a base verdadeira da segurança e da paz, a sua garantia a montante.
12. A transmutação do corpo político da Europa é a concomitante transmutação dos corpos-Estado que a formaram. A ideia de base de um "domínio de si" que a soberania dava ao Estado encontra agora um novo território, uma larga escala, e esse território e essa escala transmudam também o significado da própria soberania. A soberania dos tempos modernos dilui-se, para bem de todos, numa escatologia política que transportou o homem-destinatário para o centro do poder. Frémito e rodopio para uma nova ordem de coisas, uma ordem dinâmica, plural, cosmopolita. A Europa converteu a razão moderna à finalidade essencial do homem que a dita. E esse é o milagre da Europa.
Verdadeiramente, a Europa é a construção mais acabada do ideal constitucional que submete o poder aos direitos. Aliás, a iconoclastia sobre os velhos paradigmas da relação entre o poder e os direitos é a revivescência da discreta sentença contida na declaração do bom povo da Virgínia que assumia o seu desígnio final no direito de cada homem à felicidade. A soberania já não é um conceito adequado para pensar o poder. O poder entretece agora uma história partilhada, é "poder político não soberano", para lembrar as teses de Hannah Arendt.
13. Talvez que a federalização da Europa seja um destino incontornável, uma questão de existência ou mesmo de sobrevivência. Por enquanto, o Tratado representa em relação a esse desígnio o paradoxo de um avanço e de um recuo. Ele é mais do que os Tratado anteriores, mas, ao mesmo tempo, substitui e, assim, por enquanto, trava a ambição maior de uma Europa constitucionalizada. A Constituição promovia a politização do centro político europeu. O Tratado conseguiu-o em menor grau. Ora, há um valor performativo indiscutível num texto constitucional e nas estruturas de lealdade que ele desencadeia!
A "unificação" da economia e as condições demográficas voltarão, mais cedo ou mais tarde, a empurrar-nos para o objectivo de uma integração política mais intensa. E também, não menos importante, uma ética pública europeia que se desenvolve nesta prática de interacção e de partilha. O facto da partilha e o espírito do facto ditarão a regra.
14. Jean Monnet dizia, em Agosto de 1943, que "não haverá paz na Europa se os Estados se reconstituem sobre a base da soberania nacional no que ela implica de ascendente político e protecção económica". O devir da Europa transporta, como é evidente, a energia de um princípio federal de supra-nacionalidade. Um princípio que é muito mais do que a simples cooperação. Um princípio contagiante para formas de organização idênticas à União noutras regiões do mundo. Uma entidade europeia integrada e dotada de personalidade jurídica é muito mais do que uma soma de Estados.
O que há de verdadeiramente singular neste projecto europeu é ele ser um projecto de uma humanidade partilhada numa democracia que se organiza em larga escala. É esta ambição que dará continuidade ao Tratado. Desafio ético que vem de dentro, desafio dos problemas globais a que temos de responder. Desafio de uma visão do mundo que entranha um sonho emancipador da história.
A ambição europeia nasceu há 50 anos, sobre a rejeição da dor e a inquietação da memória, mas as virtualidades do Tratado de Roma trouxeram-nos muito para além dessa cruzada. Geraram um projecto de futuro. A Europa quis-se fazer espaço de valores e não apenas espaço de mercado. Quis-se garantia da dignidade e não apenas garantia da paz. Quis-se união e não apenas cooperação. Quis-se integração e não apenas negociação. E é essa a ambição que marca o seu destino. Implacável. O Tratado de Lisboa tem, verdadeiramente, muitas das sementes e alguns frutos de uma Europa pós-nacional. Sem dúvida, Babel construirá a sua torre.
A Carta está aí num anexo, que só não obrigou a Inglaterra e a Polónia. Por muito tempo? Sobre a Carta, o Tribunal de Justiça trabalhará a matéria da sua jurisprudência, e a partir da Carta, desenvolverá o seu papel de promotor da coerência do sistema.
10. Também a subsidiariedade - método que distribui as tarefas entre as instituições europeias e as instituições nacionais - é matéria candidata à solução de conflitos pelo Tribunal de Justiça.
O quadro das competências do centro político e dos Estados membros é agora mais claro e os Parlamentos nacionais são chamados a um controlo a priori da subsidiariedade, que, antes, cabia só à Comissão e ao Tribunal. A subsidiariedade é agora uma espécie de "subsidiariedade integrada" em que os Parlamentos nacionais ganham um estatuto de parte, num jogo de interacções com o centro político da União. A Europa é, aliás, cada vez mais uma Europa dos Parlamentos. O papel dos Parlamentos nacionais nesse controlo da subsidiariedade traz ao processo de decisão uma legitimidade acrescida. Não se sabe se também uma diminuição do potencial de conflitos. Uma coisa é certa. O Tribunal tem aqui um papel essencial de composição, próprio de um juiz Hércules. É que a subsidiariedade constitui um método racional de distribuição de competências num trabalho em rede, mas ela vem sendo muitas vezes invocada com a pretensão de um desgaste dos poderes do centro o qual, levado às últimas consequências, seria afinal a erosão da União. O Tribunal de Justiça tem nas suas mãos esta tarefa de definir os limites entre a subsidiariedade como método e a subsidiariedade como ameaça.
11. Com o Tratado de Lisboa a União Europeia ganha uma eficiência a um tempo política e moral. Porque é a capacidade de as instituições produzirem resultados numa comunidade de direito que projectará a ética pública da Europa na sua relação com o mundo. Para mais, quando a globalização se tornou um desafio que é feito não apenas à economia, mas também à justiça. Só uma comunidade assim reforçada é capaz de devolver à política o seu papel de regulação da economia, quer dizer, o seu relativamente perdido poder programante. A Europa é um novo bloco, resposta integrada à força dos mercados e, ao mesmo tempo, marco de uma existência política que torna o mundo mais equilibrado e multipolar. E um mundo equilibrado e multipolar é o mundo dos direitos, a base verdadeira da segurança e da paz, a sua garantia a montante.
12. A transmutação do corpo político da Europa é a concomitante transmutação dos corpos-Estado que a formaram. A ideia de base de um "domínio de si" que a soberania dava ao Estado encontra agora um novo território, uma larga escala, e esse território e essa escala transmudam também o significado da própria soberania. A soberania dos tempos modernos dilui-se, para bem de todos, numa escatologia política que transportou o homem-destinatário para o centro do poder. Frémito e rodopio para uma nova ordem de coisas, uma ordem dinâmica, plural, cosmopolita. A Europa converteu a razão moderna à finalidade essencial do homem que a dita. E esse é o milagre da Europa.
Verdadeiramente, a Europa é a construção mais acabada do ideal constitucional que submete o poder aos direitos. Aliás, a iconoclastia sobre os velhos paradigmas da relação entre o poder e os direitos é a revivescência da discreta sentença contida na declaração do bom povo da Virgínia que assumia o seu desígnio final no direito de cada homem à felicidade. A soberania já não é um conceito adequado para pensar o poder. O poder entretece agora uma história partilhada, é "poder político não soberano", para lembrar as teses de Hannah Arendt.
13. Talvez que a federalização da Europa seja um destino incontornável, uma questão de existência ou mesmo de sobrevivência. Por enquanto, o Tratado representa em relação a esse desígnio o paradoxo de um avanço e de um recuo. Ele é mais do que os Tratado anteriores, mas, ao mesmo tempo, substitui e, assim, por enquanto, trava a ambição maior de uma Europa constitucionalizada. A Constituição promovia a politização do centro político europeu. O Tratado conseguiu-o em menor grau. Ora, há um valor performativo indiscutível num texto constitucional e nas estruturas de lealdade que ele desencadeia!
A "unificação" da economia e as condições demográficas voltarão, mais cedo ou mais tarde, a empurrar-nos para o objectivo de uma integração política mais intensa. E também, não menos importante, uma ética pública europeia que se desenvolve nesta prática de interacção e de partilha. O facto da partilha e o espírito do facto ditarão a regra.
14. Jean Monnet dizia, em Agosto de 1943, que "não haverá paz na Europa se os Estados se reconstituem sobre a base da soberania nacional no que ela implica de ascendente político e protecção económica". O devir da Europa transporta, como é evidente, a energia de um princípio federal de supra-nacionalidade. Um princípio que é muito mais do que a simples cooperação. Um princípio contagiante para formas de organização idênticas à União noutras regiões do mundo. Uma entidade europeia integrada e dotada de personalidade jurídica é muito mais do que uma soma de Estados.
O que há de verdadeiramente singular neste projecto europeu é ele ser um projecto de uma humanidade partilhada numa democracia que se organiza em larga escala. É esta ambição que dará continuidade ao Tratado. Desafio ético que vem de dentro, desafio dos problemas globais a que temos de responder. Desafio de uma visão do mundo que entranha um sonho emancipador da história.
A ambição europeia nasceu há 50 anos, sobre a rejeição da dor e a inquietação da memória, mas as virtualidades do Tratado de Roma trouxeram-nos muito para além dessa cruzada. Geraram um projecto de futuro. A Europa quis-se fazer espaço de valores e não apenas espaço de mercado. Quis-se garantia da dignidade e não apenas garantia da paz. Quis-se união e não apenas cooperação. Quis-se integração e não apenas negociação. E é essa a ambição que marca o seu destino. Implacável. O Tratado de Lisboa tem, verdadeiramente, muitas das sementes e alguns frutos de uma Europa pós-nacional. Sem dúvida, Babel construirá a sua torre.